Poder Judiciário
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

Habeas Corpus Nº 5011704-72.2020.4.04.0000/PR

DESPACHO/DECISÃO

O Senhor Desembargador Leandro Paulsen: 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de S. H. C., nascido em 01-12-1982, em face do Juízo Federal da 1ª VF de Guaíra, objetivando a dispensa ou a redução do valor arbitrado a título de fiança.

O paciente foi preso em flagrante em 16-03-2020. Segundo consta do apuratório, na referida data, após abordagem ao conjunto formado pelo caminhão Volvo e carretas SR Randon, que vinha conduzido por SEBASTIÃO, equipe policial teria localizado cerca de 1.000 (mil) caixas de cigarros de procedência paraguaia.

Na mesma data, o juízo de origem homologou o flagrante e concedeu liberdade provisória ao flagrado, mediante o pagamento de fiança no valor de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais).

Formulado pedido de reconsideração, o mesmo foi indeferido pelo juízo a quo, em decisão datada de 23-03-2020.

2. A parte impetrante sustenta, em síntese, a impossibilidade econômica de arcar com o valor da contracautela no patamar estabelecido.

Refere que o paciente sempre exerceu a função de motorista, tendo o seu último vínculo empregatício encerrado no começo do presente ano, estando, portanto, atualmente desempregado. Alega que o mesmo reside em humilde casebre pertencente a seu sogro, às margens da BR 277, servindo para abrigo para SEBASTIÃO e sua família, composta por ele, sua esposa e dois filhos menores.

Destaca o avanço da pandemia do coronavírus (Covid-19) no Brasil e a necessidade de observância do quanto disposto na recente Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça.

Requer, por fim, a dispensa ou a redução do valor arbitrado a título de fiança.

3. A liminar foi indeferida por este Relator (ev. 2).

4. A Procuradoria Regional da República ofereceu parecer, manifestando-se pela concessão parcial da ordem (ev. 7).

5. Peticionou, a parte impetrante, requerendo a reconsideração da decisão inaugural (ev. 10), o que foi deferido (ev. 11).

6. Comunicada a instância originária acerca da decisão (ev. 15), sobreveio ofício do juízo a quo, informando a esta Relatoria a decretação da prisão preventiva do paciente (ev. 16).

7. Peticiona, novamente, a parte impetrante, desta vez alegando ilegalidade na decretação da prisão preventiva por parte do magistrado de origem (ev. 21).

É o relatório.

8. Decido.

Transcrevo a decisão ora combatida (ev. 16):

2. Fundamentação

Conforme visto, a decisão do TRF4 teve por fundamento a decisão proferida em 01/04/2020 pelo Min. Sebastião Reis Júnior no Habeas Corpus nº 568.693/ES, determinando a extensão dos efeitos da decisão que instituiu a soltura, independentemente do pagamento da fiança, em favor de todos aqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicionada ao pagamento de fiança e ainda se encontram submetidos à privação cautelar de liberdade em razão do não pagamento do valor, em todo o território brasileiro.

Assim, em observância ao que foi decidido pelas instâncias superiores, nada impede que, não sendo mais possível a exigência da fiança, se analise a conveniência da imposição de outras medidas cautelares em substituição à fiança.

No caso dos autos, na decisão que deferiu a concessão de liberdade provisória mediante recolhimento de fiança ficou entendido, naquele momento processual, a desnecessidade da decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal em relação ao indiciado S. H. C..

Ou seja, na ocasião foi verificado que havia outra cautelar (fiança), capaz de vincular o flagrado à investigação e a eventual ação penal e de evitar novos atos.

Entendeu-se, portanto, que com o recolhimento efetivo da cautela iriam desaparecer as hipóteses de risco à aplicação da lei e à ordem pública, pois a fiança impõe vinculo jurídico oneroso ao flagrado em caso de descumprimento, considerando que eventual quebra de fiança impõe ao indiciado o risco de perda do valor e serve como incentivo e não voltar ao meio criminoso.

Por outro lado, em caso de não recolhimento da fiança pelo indiciado, este abre mão de criar o vínculo oneroso ao inquérito e, por óbvio, remanescem as hipóteses de risco à aplicação da lei penal e à ordem pública.

Assim, de início, deve ficar registrado que a decisão do STJ, ao afastar a necessidade de recolhimento da fiança como cautelar, esvazia os fundamentos da decisão que aplicou a medida e acaba por gerar a necessidade de uma nova avaliação de todo o contexto fático envolvido e se existem no ordenamento outras medidas cautelares capazes de substituí-la.

Dito isso, analisando os fundamentos da decisão que entendeu ser a fiança a medida mais adequada na ocasião, não se pode desconsiderar que a análise fática das circunstâncias do evento criminoso são suficientemente graves, razão pela qual, inclusive, foi feita a opção pela fixação de um valor mais considerável a título de fiança, com base no que estabelece o artigo 326 do CPP, que determina que se leve em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento”.

Vale transcrever trecho da decisão do ev. 4, em que constam os fundamentos utilizados para o arbitramento da fiança:

(...)

Passo à fixação da fiança.

Inicialmente, cumpre ressaltar que, como o máximo da pena privativa de liberdade dos delitos imputados é superior a 4 (quatro) anos, a fiança deve ser fixada em patamar variável entre 10 (dez) e 200 (duzentos) salários mínimos (art. 325, inc. II, CPP, com redação dada pela Lei 12.403/11).

O caso, a meu ver, não permite fixação de fiança no patamar mínimo. 

Embora seja obviamente prematuro afirmar que o custodiado "pertença" a uma organização criminosa, é, sim, possível, aventar a possibilidade de que tenham "interagido" com algum grupo criminoso, cuja atuação notoriamente compromete a ordem pública.

Ressalta-se que o delito de contrabando de cigarros é altamente lucrativo e, por sua natureza, exige considerável disponibilidade financeira, seja dos executores, seja dos mandantes, para adquirir a mercadoria internalizada ilegalmente, bem como para realizar o carregamento do veículos que venham a efetuar o transporte de cigarros até os grandes centros urbanos.

Dessa maneira, a gravidade da situação, a forte sugestão de que atuava no bojo de organização criminosa, e o elevado valor das mercadorias apreendidas, demanda o arbitramento da fiança em patamar rigoroso.

Diante do exposto, com fundamento nos artigos 310, III, do Código de Processo Penal, e art. 5º, LXVI da Constituição da República, concedo a S. H. C., o benefício da liberdade provisória, mediante o depósito de fiança, em espécie, no valor de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais), ficando este vinculado ao processo criminal instaurado. Condiciono a liberdade à apresentação de comprovante de endereço.

Após o recolhimento da cautela fixada, expeça-se o alvará de soltura, a fim de que o conduzido seja posto em liberdade, após ser advertido na forma dos artigos 327 e 328 do CPP.

(...)

Vale registrar que o valor arbitrado foi mantido pelo TRF da 4ª Região no HC n. 5011704-72.2020.404.0000, em decisão proferida em 26/03/2020 (ev. 2 do HC), em que constou:

(...)

O juízo de origem já decidiu que não se extraem do inquérito policial fundamentos para decretação da prisão preventiva, tanto que concedeu liberdade provisória ao flagrado por meio da aplicação de medidas cautelares alternativas.

Registro não existir qualquer ilegalidade na fixação de fiança para fins de concessão da liberdade. A sua imposição, como medida cautelar diversa da prisão, está prevista no artigo 319, inciso VIII, do Código de Processo Penal.

Para a fixação do patamar da fiança, a disciplina a ser observada pelo julgador está regulada nos artigos 325 e 326 do Código de Processo Penal. Deve o magistrado atentar para o fato de que a fiança não pode ostentar valor irrisório, sendo ineficaz aos propósitos a que se destina, bem como não pode configurar um impeditivo completo ao livramento mediante imposição de quantia demasiadamente elevada.

Dispõe o artigo 326 do mesmo diploma legal que para determinar o valor da fiança a autoridade deverá considerar, além da natureza da infração e a importância provável das custas do processo até final julgamento, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado e as circunstâncias indicativas de sua periculosidade.

No caso dos autos, inexiste, por ora, inequívoca demonstração de situação de miserabilidade capaz de exonerar o paciente da caução (artigo 350 do CPP).

A redução da fiança, por sua vez, não teria o condão de desestimular a prática delitiva e vincular o flagrado ao processo. Com efeito, não se pode desconsiderar a expressividade da carga apreendida (1.000 caixas ou 50.000 pacotes de cigarros) e a utilização de veículo de grande porte, o que sugere a possibilidade de envolvimento com organização criminosa dotada de poderio econômico e atuante em crimes desta natureza e permite inferir a capacidade econômica, ainda que indireta, do paciente.

Neste contexto, afigura-se justificado o recrudescimento do valor arbitrado a título de fiança. Ademais, a prisão é recente, sendo certo que o pouco tempo decorrido desde o arbitramento da contracautela, ocorrido em 16-03-2020, não aponta para o exaurimento dos meios do paciente para a obtenção do respectivo montante.

Quanto ao pedido para que se observe a recomendação do Conselho Nacional de Justiça na Resolução nº 62/2020, tenho que melhor sorte não assiste à parte impetrante.

Não obstante o país esteja em um momento de cautela diante do avanço da pandemia do coronavírus (Covid-19), a norma acima referida não indica a compulsoriedade de soltura daqueles que se encontram presos por ausência de pagamento de fiança. Com efeito, o seu artigo 4º, por exemplo, recomenda a revisão de algumas prisões cautelares em certas condições e em determinados estabelecimentos, não se enquadrando, o paciente, em qualquer das hipóteses ali previstas, conforme destacado pelo magistrado de origem.

Isso posto, indefiro a liminar postulada.

Todavia, não sendo mais possível a exigência da fiança por força das decisões recentes do TRF4 e do STJ, mister verificar as outras medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:         

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;         

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;         

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;          

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; 

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;       

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;      

IX - monitoração eletrônica.

Conforme dito, a fiança anteriormente fixada levou em consideração a gravidade do delito, as circunstâncias e os demais elementos previstos no art. 326 do CPP, de modo que, dentre as demais cautelares previstas no CPP, não vislumbro a possibilidade de nenhuma em sua substituição que seja capaz de gerar o mesmo vínculo oneroso do flagrado à investigação e a eventual ação penal e de evitar novos atos delitivos.

Vale repetir que o afastamento da exigência de fiança determina nova análise de todo o contexto fático, inclusive da necessidade da "medida cautelar de prisão".

Dito isso, não bastassem os argumentos já declinados na decisão do ev. 4 acerca da gravidade dos fatos, que foi mantida pelo TRF4 no HC n. 5011704-72.2020.404.0000, especialmente a "expressividade da carga apreendida (1.000 caixas ou 50.000 pacotes de cigarros) e a utilização de veículo de grande porte, o que sugere a possibilidade de envolvimento com organização criminosa dotada de poderio econômico e atuante em crimes desta natureza e permite inferir a capacidade econômica, ainda que indireta, do paciente", deve ser considerado, nesta decisão de reanálise, ainda, a questão da ponderação da segurança e do interesse da instrução penal, não havendo outra medida cautelar prevista na legislação que não coloque em flagrante risco a sociedade, uma vez que, conforme já dito, sem o ônus da quebra da fiança, a chance da reiteração criminosa cresce exponencialmente, ainda mais num contexto típico e característico de organização criminosa.

Assim, em não sendo as outras medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP suficientes a afastar o risco à aplicação da lei penal e à ordem pública, ou seja, não apresentando estas outras medidas o mesmo efeito da fiança no caso concreto, a única forma de efetivamente resguardar a aplicação da lei penal e a garantia da ordem pública é a decretação de "medida cautelar de prisão preventiva", com base no § 2º do art. 312 do CPP, que estabelece:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

§ 1º  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). 

§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. 

Conforme se verifica, as decisões do TRF da 4ª Região e do STJ nos Habeas Corpus, respectivamente, ns. 5011704-72.2020.404.0000 e 568.693/ES, se caracterizam como fato novo e contemporâneo e justificam a decretação da medida cautelar de prisão preventiva no caso em apreço, ante a inexistência de outras medidas cautelares que sejam suficientes para afastar o risco à aplicação da lei penal e à ordem pública.

Além disso, o artigo 316 do CPP permite que o juiz, de ofício e no curso do processo, decrete a prisão preventiva, desde que identifique a existência de novas razões que a justifiquem, nos seguintes termos:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.     (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)       

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

No ponto, é induvidoso que as decisões dos HC´s justificam a reanálise da decisão anterior, inclusive sobre a existência ou não de razões suficientes para a decretação da prisão preventiva.

Vale repisar, por fim, que ao deixar de efetuar o recolhimento da fiança arbitrada até o presente momento, o indiciado abriu mão de criar o vínculo oneroso ao inquérito e, por consequência, remanescem as hipóteses de risco à aplicação da lei penal e à ordem pública, as quais não são afastadas de plano pelas decisões proferidas pelo TRF4 e pelo STJ, que, salvo melhor juízo, cautelosamente atribuíram ao magistrado competente a análise da necessidade ou não de aplicação de novas medidas.

Desta forma, como não há outras medidas cautelares aptas a substituir a fiança arbitrada, subsistem as hipóteses de risco à aplicação da lei penal e à ordem pública.

Anoto, a título meramente informativo, que em decisão análoga à presente proferida nos autos n. 5000537-56.2020.404.7017, em juízo de reanálise da conveniência da imposição de outras medidas cautelares alternativas à fiança, proferi decisão no mesmo sentido e decretei a prisão preventiva dos indiciados naquela ocasião, que foi mantida pelo TRF da 4ª Região nos autos do Habeas Corpus n. 5013697-53.2020.404.0000.

3. Dispositivo

Ante o exposto, nos termos das decisões proferidas pelo TRF da 4ª Região da 4a Região no Habeas Corpus n. 5011704-72.2020.404.0000 e pelo STJ no Habeas Corpus n. 568.693/ES, com fundamento no artigo 312, § 2º, e art. 316, ambos do Código de Processo Penal, em reanálise da decisão anterior que havia concedido a liberdade provisória mediante recolhimento de fiança, DECRETO A MEDIDA CAUTELAR DE PRISÃO PREVENTIVA do indiciado S. H. C., para assegurar a aplicação da lei penal e garantia da ordem pública.

Em que pesem os argumentos expostos pelo magistrado de origem para a decretação da prisão preventiva, tenho que não são suficientes para superar a decisão que deferiu o pedido de reconsideração nos presentes autos. Vejamos.

Transcrevo, novamente, o trecho final da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no HC nº 568.693/ES:

Ante o exposto, defiro o pedido apresentado pela Defensoria Pública da União para determinar a extensão dos efeitos da decisão que instituiu a soltura, independentemente do pagamento da fiança, em favor de todos aqueles a quem foi concedida liberdade provisória condicionada ao pagamento de fiança e ainda se encontram submetidos à privação cautelar de liberdade em razão do não pagamento do valor, em todo o território brasileiro.

Ressalto que, nos casos em que impostas outras medidas cautelares diversas e a fiança, afasto apenas a fiança, mantendo as demais medidas.

Por sua vez, nos processos em que não foram determinadas outras medidas cautelares, sendo a fiança a única cautela imposta, é necessário que os Tribunais de Justiça estaduais e os Tribunais Regionais Federais determinem aos juízes de primeira instância que verifiquem, com urgência, a conveniência de se impor outras cautelares em substituição à fiança ora afastada. (grifei e sublinhei)

Verifico, inicialmente, que a conveniência jurídica da imposição da segregação cautelar do flagrado fora afastada no momento da homologação do flagrante, quando o juízo a quo afirmou não verificar, na espécie, “a necessidade de decretação da prisão preventiva do indiciado, ante a inocorrência dos requisitos do art. 312 do CPP. Com efeito, a manutenção da prisão do flagrado não se faz necessária como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”, razão pela qual concedeu liberdade provisória ao paciente mediante pagamento de fiança.

A imposição de fiança tem, por natureza, a finalidade de vincular onerosamente o indiciado/réu ao inquérito/processo – não sendo uma exclusividade do presente caso –, aspecto certamente já levado em conta pelo Superior Tribunal de Justiça ao proferir a decisão acima colacionada. Dessa forma, tal característica, ínsita ao instituto, não pode ser utilizada para justificar, no caso, a decretação da prisão preventiva do flagrado, o que equivaleria a esvaziar o conteúdo da decisão proferida por aquela Corte Superior.

Ademais, analisando-se os termos contidos na decisão do STJ, tenho que, afastada a fiança, concedeu-se aos juízes de primeira instância a possibilidade de impor outras cautelares alternativas (previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal) em substituição àquela cautela. Explico: a contraposição (“Por sua vez...”) iniciada no terceiro parágrafo – que trata da imposição apenas da fiança como medida cautelar – está, à toda evidência, relacionada ao quanto disposto no parágrafo anterior, que faz referência aos casos em que a fiança foi cumulada com “outras medidas cautelares diversas” (da prisão), as quais devem subsistir quando afastada a contracautela.

Aliás, foram justamente essas medidas cautelares alternativas, ou seja, diversas da prisão, as apontadas por este Relator como passíveis de serem impostas pelo juízo de origem. Veja-se:

Isso posto, em cumprimento à decisão proferida pela Corte Superior e ressalvado meu entendimento pessoal, defiro o pedido de reconsideração, para o fim de dispensar o paciente do recolhimento de fiança, cabendo ao magistrado de origem verificar, de imediato, a conveniência da imposição de outras medidas cautelares alternativas no caso concreto. (grifei e sublinhei)

Em arremate, cabe rememorar o contexto em que proferida a decisão no HC nº 568.693/ES, que fora delineado pelo próprio Relator daquele feito, Ministro Sebastião Reis Júnior:

Na hipótese, conforme asseverado pela requerente, o quadro fático apresentado pelo Estado do Espírito Santo é idêntico aos dos demais Estados brasileiros: o risco de contágio pela pandemia do coronavírus (Covid-19) é semelhante em todo o País, assim como o é o quadro de superlotação e de insalubridade dos presídios brasileiros.

Sendo assim, ausente circunstância específica que autorize tratamento diferenciado entre os presos situados nos diversos estados brasileiros, impõe-se a extensão dos efeitos da decisão de fls. 139/145, segundo orienta a jurisprudência desta Corte. (grifei)

Ora, em uma interpretação teleológica, verifica-se a intenção da Corte Superior em restringir, o quanto possível, a exposição de presos com situação processual menos grave – justamente aqueles a quem fora concedida liberdade provisória mediante pagamento de fiança – ao contágio pelo coronavírus dentro dos presídios brasileiros, sendo, por tal razão, desarrazoado concluir que, dentre as cautelares referidas pelo STJ como passíveis de serem adotadas em substituição à fiança, estivesse justamente a prisão preventiva, cuja decretação acabaria, ao fim e ao cabo, por manter o encarceramento do paciente, o que acabaria por desprezar a própria finalidade da decisão emanada daquela Corte Superior.

Neste cenário, tenho que a fundamentação do novel decreto prisional acaba por afrontar, ainda que obliquamente, a determinação do Superior Tribunal de Justiça e também a deste Regional. Não obstante a ressalva de entendimento se faça possível – a exemplo, inclusive, do registro feito por este Relator quando deferido o pedido de reconsideração formulado pela parte impetrante –, a hierarquia entre as instâncias deve ser observada, sob pena de indevida perturbação à segurança jurídica, princípio cuja observância se espera por parte dos órgãos do Poder Judiciário.

Não é essa, contudo, a única mácula na decisão proferida pela instância originária.

Prossigo.

O juízo de origem, comunicado da decisão que afastou a necessidade de pagamento de fiança, teve por bem decretar, na mesma data e de ofício, a prisão preventiva do flagrado, em afronta ao quanto disposto na recente inovação legislativa insculpida no artigo 311 do Código de Processo Penal, in verbis:

Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (grifei)

Mesmo na redação anterior do dispositivo, que previa a possibilidade de decretação de prisão preventiva, de ofício, se no curso de ação penal, a doutrina e a jurisprudência pátrias já possuíam entendimento consolidado pela impossibilidade de decretação de prisão cautelar, de ofício, na fase investigatória.

Nesse sentido, a lição de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:

Corrigindo antigo defeito, e, no ponto, divergindo do art. 156, relativo às provas, a Lei nº 12.403/11 somente autoriza a decretação da preventiva de ofício, pelo juiz, quando no curso do processo. Na fase da investigação, dependerá de provocação, seja da autoridade policial (por meio de representação - ...), seja por requerimento do Ministério Público. (...) Sua atuação [a do juiz] na fase de investigação, ainda quando produza resultados para a qualidade da investigação, não encontra nela (investigação) a sua fundamentação. Ao contrário, o juiz, ali, exerce uma das mais importantes missões reservadas à jurisdição penal: a tutela das liberdades públicas, exercendo o controle de legalidade da investigação e das ingerências na vida privada dos investigados e de terceiros. Da investigação em inquérito policial cuida, primeiro, a polícia, e, junto a ela, o Ministério Público, destinatário natural do material colhido nessa oportunidade, para fins de ajuizamento ou não da ação penal. (COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E SUA JURISPRUDÊNCIA - 5ª ed. rev. e atual. até fevereiro de 2013 - São Paulo: Atlas, 2013, p. 641)

Na mesma linha, a jurisprudência sedimentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL PENAL E PENAL. RECUSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. FRAUDES PREVIDENCIÁRIAS. PRISÃO PREVENTIVA. FASE INVESTIGATÓRIA. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO. ART. 311 DO CPP. ILEGALIDADE. OCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. Tendo sido a prisão preventiva decretada de ofício na fase investigatória, verifica-se a ocorrência de ilegalidade, em razão da não observância do disposto no art. 311 do CPP, segundo o qual: Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. 2. O Tribunal de origem não pode suprir a ausência de motivação do decreto prisional proferido pelo juiz singular, sob pena de o habeas corpus servir de vetor convalidante do encarceramento ilegal. 3. Recurso em habeas corpus provido, para soltura do paciente F S DE M J, o que não impede nova e fundamentada decisão cautelar penal, inclusive menos gravosa do que a prisão processual. (RHC 86.572/PA, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 03/10/2017, DJe 09/10/2017) (grifei)

A nova redação do art. 311 do CPP, como visto, solidifica tal impossibilidade. Assim, embora caiba ao Poder Judiciário decretar a prisão preventiva do investigado no curso de inquérito em andamento, deverá o magistrado ser provocado para tanto, sendo-lhe vedada qualquer iniciativa nesse sentido.

Na espécie, não houve representação da autoridade policial e tampouco requerimento do Ministério Público pela prisão preventiva, que não foi decretada, em nenhum momento anterior ao presente, no bojo do inquérito policial. Por tal razão, saliento ser inaplicável a disposição contida no art. 316 do CPP (“O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”), invocada pelo magistrado singular para a imposição da medida extrema, porquanto diz respeito a hipóteses em que já houve decretação anterior de prisão preventiva no bojo de inquérito policial ou processo – vide a expressão “novamente decretá-la” –, o que, como se viu, não ocorreu no presente caso, em que o juízo a quo entendeu pela desnecessidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva (art. 310, II, CPP), concedendo liberdade provisória ao paciente, ante a não observância dos fundamentos previstos no art. 312 do CPP.

Por fim, não obstante a própria ilegalidade da decretação de ofício da prisão cautelar, conforme acima mencionado, verifico, também, que sequer subsistiriam fundamentos aptos a ensejar a decretação da medida extrema.

Compulsando os autos do inquérito policial, verifico a presença de fato novo, que deve ser levado em consideração no caso concreto.

Há poucos dias, em 14-04-2020, a autoridade policial deu por encerrada a investigação, apresentando relatório final no inquérito (ev. 49). Na oportunidade, o Delegado descreveu o andamento dado ao apuratório e deu por encerrado o trabalho da Polícia Judiciária, "remetendo-se os presentes autos para apreciação e demais providências que se entendam pertinentes, permanecendo este órgão policial à disposição para eventuais outras diligências que sejam imprescindíveis ao oferecimento da denúncia".

Assim, embora o juízo a quo ventile a possibilidade de envolvimento do paciente com organização criminosa - conclusão extraída do montante da carga apreendida, circunstância que, num primeiro momento, diga-se, também foi levada em consideração por este Relator quando do indeferimento da liminar que postulava a redução da fiança, datada de 26-03-2020 -, fato é que, até o momento, decorrido mais de um mês desde a prisão do paciente, que é primário, e encerrada a investigação, não sobrevieram quaisquer elementos nesse sentido, sendo inviável decretar a prisão sem um lastro probatório mínimo acerca da aventada associação delitiva.

Somado a isso, também devem ser considerados os seguintes elementos, apontados pelo órgão ministerial em seu parecer (ev. 7):

De fato, trata-se de crime praticado sem violência ou grave ameaça, bem como o paciente não ostenta antecedentes criminais (evento 3 do IPL).

(...)

Haverá, incontestavelmente, constrangimento ilegal quando, mesmo sem a presença dos requisitos da prisão cautelar, a pessoa seja mantida custodiada, porque carente de recursos para usufruir do direito de responder o processo em liberdade, mediante a aplicação de medida cautelar pessoal menos invasiva.

No caso dos autos, reafirmo que não há notícias de antecedentes criminais, bem como não foram reconhecidos os requisitos da prisão preventiva pelo Juízo impetrado.

A defesa, a propósito, a fim de comprovar a alegada incapacidade financeira, anexou os documentos da esposa e filhos do paciente, cópia da CTPS com anotação de emprego até janeiro deste ano, comprovante de residência, fotos da casa localizada na zona rural do município de Fernandes Pinheiro/PR, e cadastro de pequeno produtor rural em nome da esposa.

Cumpre ressaltar, ainda, que o paciente permanece preso, mesmo após a fixação da fiança, ocorrida em 16.03.2020 (evento 4 dos autos do IPL)

Neste cenário, tenho que a imposição de alguma(s) das medidas cautelares alternativas elencadas no artigo 319 do Código de Processo Penal já deverá ser suficiente para o acautelamento da ordem pública e para vincular o flagrado ao processo.

Em suma, seja pela i) superação indevida da determinação imposta pelo Superior Tribunal de Justiça e também por este Regional, seja pela ii) impossibilidade de inédita decretação de prisão preventiva, de ofício, no bojo de inquérito em andamento, seja pela iii) própria inexistência de fundamentos a embasar a medida extrema, afigura-se ilegal a segregação cautelar imposta em desfavor do paciente.

Isso posto, revogo a prisão preventiva decretada no evento 54 do Inquérito Policial nº 5000461-32.2020.4.04.7017/PR e, reiterando o dispositivo da decisão anterior (ev. 11), determino ao magistrado de origem que verifique, de imediato, a conveniência da imposição de outras medidas cautelares diversas da prisão no caso concreto, à exceção da fiança.

Comunique-se, de pronto, ao juízo a quo.

Intimem-se.

Após, retornem conclusos para julgamento.



Documento eletrônico assinado por LEANDRO PAULSEN, Desembargador Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 40001745270v18 e do código CRC f8dbc24d.

Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): LEANDRO PAULSEN
Data e Hora: 22/4/2020, às 8:42:3

 


 



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